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Vila de Cano

Diário de Uma Seca de Terra

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Os incêndios do regime

16.08.05 | M!ro
in Publico de 11-08-2005 de autoria de Paulo Varela Gomes.. acho interessante e resolvi partilhar:

"O território português que está a arder - que arde há vários anos - não é
um território abstracto, caído do céu aos trambolhões: é o território
criado pelo regime democrático instalado em Portugal desde as eleições de
1976 (a III República Portuguesa). Está a arder por causa daquilo que o
regime fez, por culpa dos responsáveis do regime e dos eleitores que
votaram neles.
Ardem, em Portugal, dois tipos de território: em primeiro lugar, a floresta
de madeireiro, as grandes manchas arborizadas a pinheiro e eucalipto. A
floresta arde porque as temperaturas não param de subir e porque, como toda
a gente sabe, está suja e mal ordenada. Não foi sempre assim: este tipo de
floresta começou a crescer nos últimos 50 anos, com a destruição
progressiva da agricultura tradicional, ou seja, com a expropriação dos
pequenos agricultores, obrigados em primeiro lugar a recorrer à floresta
pela ruína da agricultura, para, depois, perderem tudo com os incêndios e
desaparecerem do mapa social do país. Também isso está na matriz da III
República: ela existe para "modernizar" o país, o que também quer dizer
acabar com as camadas sociais de antigamente, nomeadamente os pequenos
agricultores. Em 2005, os distritos de Portalegre, Castelo Branco e Faro
ardem menos que os outros e não admira: já ardeu aí muita da grande mancha
florestal que podia arder, já centenas de agricultores e silvicultores das
serras do Caldeirão ou de S. Mamede perderam tudo o que podiam perder.
O segundo tipo de território que está a arder, em particular neste ano de
2005, é o território das matas periurbanas, características dos distritos
mais feios e mais destruídos do país: os do litoral Centro e Norte. Os
citadinos podem ver esse território nas imagens da televisão, a arder por
detrás dos bombeiros exaustos e das mulheres desesperadas que gritam
"valha-me Nossa Senhora!": é o território das casas espalhadas por todas as
encostas e vales, uma aqui, outra acolá, encostadas umas às outras, sem
espaço para passar um autotanque, separadas por caminhos serpenteantes, que
ficaram em parte por alcatroar - é o território das oficinecas no meio de
matos de restolho sujo de óleo, montanhas de papel amarelecido ao sol,
garrafas de plástico rebentadas. É o território dos armazéns mais ou menos
ilegais, cheios de materiais de obra, roupas, mobiliário, coisas de
pirotecnia, encostados a casas ou escondidos nos eucaliptais, o território
dos parques de sucata entre pinheiros, rodeados de charcos de óleo, poças
de gasolina, garrafas de gás, o território dos lugares que nem aldeias são,
debruados a lixeiras, paletes de madeira a apodrecer, bermas atafulhadas de
papel velho, embalagens, ervas secas. É o território que os citadinos,
leitores de jornais, jornalistas, ministros, nunca vêem porque só andam nas
auto-estradas, o território, onde, à beira de cada estradeca, no sopé de
casa encosta, convenientemente escondido dos olhares pelas silvas e os
tufos espessos de arbustos, há milhares - literalmente milhares - de
lixeiras clandestinas, mobília velha, garrafas de plástico, madeiras de
obras (é verdade, embora poucos o saibam: o campo, em Portugal, é muito
mais sujo que as cidades).
Este território foi criado, inteiramente criado, pela III República. Nasceu
da conjugação entre um meio-enriquecimento das pessoas, que, 30 anos depois
do 25 de Abril, não chega para lhes permitir uma verdadeira mudança de
vida, e o colapso da autoridade do Estado central e local, este regime de
desrespeito completo pela lei, que começa nos ministros e acaba no último
dos cidadãos. É o território do incumprimento dos planos, das portarias e
regulamentos camarários, o território da pequena e média corrupção, esse
sangue, alma, nervo da III República.
É evidente que a tragédia dos campos e das periferias urbanas portuguesas
se deve também ao aumento das temperaturas. Para isso, o regime tão-pouco
oferece perspectivas. De facto, seria necessário mudar de vida para
enfrentar o que aí vem, a alteração climatérica de que começamos a
experimentar apenas os primeiros efeitos: por exemplo, seria necessário
reordenar a paisagem, recorrendo à expropriação de casas, oficinas,
armazéns, sucatas. Seria necessário proibir a plantação de eucaliptos e
pinheiros. Na cidade, pensando sobretudo nas questões relativas ao consumo
de energia, seria necessário pensar na mudança de horários de trabalho,
fechando empresas, lojas e escolas entre o meio-dia e as cinco da tarde de
Junho a Setembro, mantendo-as abertas até às oito ou nove da noite, de modo
a poupar os ares condicionados - cuja factura vai subir em flecha.
Modificar os regulamentos da construção civil, de modo a impor pés-direitos
mais altos, menos janelas a poente, sistemas de arrefecimento não
eléctricos.
Para alterações deste calibre - que são alterações quase de civilização -,
seria preciso um regime muito diferente deste, um regime de dirigentes
capazes de dizer a verdade, de mobilizar os cidadãos, de manter as mãos
limpas.
Vivo no campo ou perto do campo, na região centro, há já alguns anos. Há
três Verões que me sento a trabalhar, enquanto a cinza cai de mansinho no
meu teclado, em cima dos meus livros, no chão que piso.
Não tenho culpa do que é hoje este país e o regime que o representa:
militei e votei sempre em partidos que apregoavam querer outro tipo de
regime e deixei de militar e de votar quando vi esses partidos tornarem-se
tão legitimistas como os outros.
Espero um rebate de consciência política por parte destes políticos, ou o
aparecimento de outros. Faço como muitos portugueses: espero por D.
Sebastião, desempenho a minha profissão o melhor que posso, e penso em
emigrar.
Historiador (Podentes, concelho de Penela)
(do Público, 11-08-05)

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